Um cálice
de história Rómulo de Almeida Os egípcios antigos dão o primeiro sinal. Curam várias moléstias, inalando vapor de líquidos aromatizados e fermentados, absorvido directamente do bico de uma chaleira, num ambiente fechado. Os gregos registram o processo de obtenção da acqua ardens. A água que pega fogo - água ardente - aparece nos registros do Tratado da Ciência escrito por Plínio, o velho, que viveu entre os anos 23 e 79 depois de Cristo. Ele conta que apanha o vapor da resina de cedro, do bico de uma chaleira, com um pedaço de lã. Torcendo o tecido obtém-se o al kuhu. A água ardente vai para as mãos dos Alquimistas que atribuem a ela propriedades místico - medicinais. Se transforma em água da vida. A eau de vie é receitada como elixir da longevidade. A aguardente então vai da Europa para o Oriente Médio, pela força da expansão do Império Romano. São os árabes que descobrem os equipamentos para a destilação, semelhantes aos que conhecemos hoje. Eles não usam a palavra al kuhu e sim al raga, originando o nome da mais popular aguardente da Península Sul da Ásia: arak. Uma aguardente misturada com licores de anis e degustada com água. A tecnologia de produção espalha-se pelo velho e novo mundo. Na Itália, o destilado de uva fica conhecido como grappa. Em terras Germânicas, se destila a partir da cereja, o kirsch. Na Escócia fica popular o whisky, destilado da cevada sacarificada. No extremo Oriente, a aguardente serve para esquentar o frio das populações que não fabricam o vinho de Uva. Na Rússia a vodka, de centeio. Na China e Japão, o sakê, de arroz. Portugal também absorve a tecnologia dos árabes e destila a partir do bagaço de uva, a bagaceira. Os portugueses, motivados pelas conquistas espanholas no Novo Mundo, lançam-se ao mar. Na vontade da exploração e na tentativa de tomar posse das terras descobertas no lado oeste do Tratado de Tordesilhas, Portugal traz ao Brasil a cana-de-açúcar, vinda do sul da Ásia. Assim surgem na nova colónia portuguesa os primeiros núcleos de povoamento e agricultura. Os primeiros colonizadores que vieram para o Brasil apreciavam a bagaceira portuguesa e o vinho do Porto. Assim como a alimentação, toda a bebida era trazida da Corte. Num engenho da Capitania de São Vicente, entre 1532 e 1548, descobrem o vinho de cana-de-açúcar - garapa azeda, que fica ao relento em cochos de madeiras para os animais, vinda dos tachos de rapadura. É uma bebida limpa, em comparação com o cauim - vinho produzido pelos índios, no qual todos cospem num enorme caldeirão de barro para ajudar na fermentação do milho, acredita-se. Os senhores de engenho passam a servir o tal caldo, denominado cagaça, para os escravos. Daí é um pulo para destilar a cagaça, nascendo aí a cachaça. Dos meados do Século XVI até metade do Século XVII, as 'casas de cozer méis', como está registrado, se multiplicam nos engenhos. A cachaça torna-se moeda corrente para compra de escravos na África. Alguns engenhos passam a dividir a atenção entre o açúcar e a cachaça. A descoberta de ouro nas Minas Gerais traz uma grande população, vinda de todos os cantos do País, que constrói cidades sobre as montanhas frias da Serra do Espinhaço. A cachaça ameniza a temperatura. Incomodada com a queda do comércio da bagaceira e do vinho portugueses na colónia e alegando que a bebida brasileira prejudica a retirada do ouro das minas, a Corte proíbe várias vezes a produção, comercialização e até o consumo da cachaça. Sem resultados, a Metrópole portuguesa resolve taxar o destilado. Em 1756, a aguardente de cana-de-açúcar foi um dos géneros que mais contribuíram com impostos voltados para a reconstrução de Lisboa, abatida por um grande terramoto em 1755. Para a cachaça são criados vários impostos conhecidos como subsídios, como o literário, para manter as faculdades da Corte. Como símbolo dos Ideais de Liberdade, a cachaça percorre as bocas dos Inconfidentes e da população que apoia a Conjuração Mineira. A aguardente da terra se transforma no símbolo de resistência à dominação portuguesa. Com o passar dos tempos melhoram-se as técnicas de produção. A cachaça é apreciada por todos. É consumida em banquetes palacianos e, misturada ao gengibre e outros ingredientes, nas festas religiosas portuguesas - dá origem ao famoso quentão. No século passado, instala-se, com a economia cafeeira, a abolição da escravatura e o início da república, um grande e largo preconceito a tudo que fosse relativo ao Brasil. A moda é europeia. Em 1922, a Semana da Arte Moderna, vem resgatar a brasilidade nos campos literário e das artes plásticas. No decorrer do nosso século, o samba é resgatado. Vira o Carnaval. Nestas últimas décadas a feijoada é valorizada como comida brasileira especial. A cachaça ainda tenta desfazer preconceitos e continuar no caminho da apuração de sua qualidade. Hoje, várias marcas de alta qualidade figuram no comércio nacional e internacional e estão presentes nos melhores restaurantes e adegas residenciais pelo Brasil e pelo mundo. |
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